segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Corrupto: quem tem o coração rompido


A indignação generalizada face à corrupção no Brasil e no mundo está dando lugar à resignação e ao descaso. Pois a impunidade é tão vulgarizada  que a maioria já descrê de qualquer solução.

Sobre este fato a teologia tem algo a dizer. Ela sustenta que a atual condição humana é dilacerada e decadente (infralapsárica, se diz  no dialeto teológico),  consequência de um ato de corrupção. Segundo a narrativa bíblica, a serpente corrompeu a mulher; a mulher corrompeu o homem; e ambos nos deixaram um legado de corrupções sobre corrupções a ponto de Deus mesmo “ter-se arrependido de ter criado o ser humano na Terra”, como nos lembra o texto do Gênesis (6,6). Somos filhos e filhas de uma corrupção originária.

Alegava-se, nos espaços cristãos, que todo mal deriva dessa corrupção originária, chamada de pecado original. Mas essa expressão se tornou estranha aos ouvidos modernos. São poucos os que se reportam a ela.

Mesmo assim, ouso resgatá-la, pois contém uma verdade inegável, atestada pela reflexão filosófica de um Sartre e mesmo pelo rigorismo filosófico de Kant, segundo o qual “o ser humano é um lenho tão torto que dele não se podem tirar tábuas retas”.

Importa anotar que é um termo criado pela teologia. Não se encontra como tal na Bíblia. Foi Santo Agostinho em diálogo epistolar com São Jerônimo que o inventou. Com a expressão “pecado original” não pretendia falar do passado. O “original” não tinha a ver com as origens primevas da história humana. Com ela Santo Agostinho queria falar do presente: a atual situação do ser humano, em seu nível mais profundo, é perversa e marcada por uma distorção que atinge as origens de sua existência (daí “original”). Fez a sua filologia da palavra “corrupto”: é ter um coração (cor) rompido (ruptus, de rompere).

Somos portadores, portanto, de uma rachadura interna que equivale a uma dilaceração do coração. Em palavras modernas: somos dia-bólicos e sim-bólicos, sapientes e dementes, capazes de amor e de ódio.

Esta é a atual condition humaine. Mas, por curiosidade, perguntava Santo Agostinho: quando ela começou? Ele mesmo responde: desde que conhecemos o ser humano: desde as “origens” (daí o segundo sentido de “original”). Mas ele não confere importância a esta questão. O importante é saber que aqui e agora somos seres corruptos, corruptíveis e corruptores. E que cremos em alguém, o Cristo, que nos pode libertar desta situação.

Mas onde se manifesta mais visivelmente este estado de corrupção? Quem nos responde é o famoso e católico Lord Acton (1843-1902): é nos portadores de poder. Enfaticamente afirma: “Meu dogma é a geral maldade dos homens de poder; são os que mais se corrompem”. E fez uma afirmação sempre repetida: “O poder  tem a tendência a se corromper, e o absoluto poder corrompe absolutamente”. Por que, exatamente, o poder? Porque é um dos arquétipos mais poderosos e tentadores da psiqué humana; dá-nos o sentimento de onipotência e de sermos um pequeno “deus”. Por isso  Hobbes no seu Leviatã (1651) nos confirma: “Assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e de mais poder, que cessa apenas com a morte; a razão disso reside no fato de que não se pode garantir o poder senão buscando ainda mais poder”.

Esse poder se materializa no dinheiro. Por isso as corrupções a que estamos assistindo envolvem sempre dinheiro e mais dinheiro. Diz um dito de Ghana: “A boca ri mas o dinheiro ri melhor”. O corrupto crê nesta ilusão.

Até hoje não achamos cura para esta ferida interior. Só podemos  diminuir-lhe  a sangria. Creio que, no termo, vale o método  bíblico: desmascarar o corrupto, deixando-o nu diante de sua corrupção e a pura e simples expulsão do paraíso, quer dizer, tirar o corruptor e o corrompido da sociedade e metê-los na prisão.


De Leonardo Boff, JORNAL DO BRASIL

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