segunda-feira, 25 de julho de 2011

Só o cidadão de bem não tinha conhecimento do esquema de corrupção no Dnit

Andre Dusek/AE e Tulio Santos/EM/D.A Press
NÃO CHECADO 
A ex-ministra Erenice, que atuava como assessora de Dilma na Casa Civil quando a denúncia chegou ao Planalto, e Hideraldo Caron, diretor do Dnit até a semana passada. No destaque, trecho da planilha com a denúncia citando Caron
Em novembro de 2006, a então secretária executiva da Casa Civil da Presidência da República, Erenice Guerra, recebeu uma carta com denúncias graves. A correspondência falava sobre como grandes empreiteiras pagavam propina aos dois últimos ministros dos Transportes, Anderson Adauto e Alfredo Nascimento, a políticos do PL e a diretores do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) durante o primeiro governo Lula. Endereçada à então chefe de Erenice, Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil na ocasião, a denúncia detalhava valores de obras, citava quem pagava e quem recebia dinheiro. Tudo muito semelhante ao esquema revelado no atual escândalo do Ministério dos Transportes.
A carta denúncia chegou ao governo depois de recebida em casa por um alto funcionário da Secretaria de Controle Interno do Palácio (Ciset), órgão que fiscaliza a lisura dos contratos firmados pela Presidência. O funcionário diz que a carta era anônima. Apesar de apócrifa, os auditores do Palácio se convenceram da necessidade de apurar. Diante do conteú­do delicado do documento, decidiram procurar Ere-nice Guerra. ÉPOCA ouviu dois funcionários da Ciset que acompanharam a história para saber o que aconteceu. De acordo com eles, depois de ler a carta, Erenice pediu um tempo para reflexão. Mais tarde, no mesmo dia, informou que não aceitaria a recomendação – mandar investigar a denúncia – para não criar problemas com a base governista no Congresso Nacional.
Hoje, lendo a carta com atenção, chega-se à conclusão de que, se as acusações tivessem sido apuradas, boa parte das suspeitas de corrup-ção surgidas nas últimas semanas – que levaram à demissão de mais de uma dúzia de funcionários dos transportes, entre eles o ministro Alfredo Nascimento – teria sido evitada.
O documento apócrifo pedia providências para que, no segundo mandato do presidente Lula, não fosse mantido o esquema de corrupção montado pelo Partido Liberal, o PL, no Ministério dos Transportes. Depois do escândalo do mensalão, em 2005, o PL mudou de nome e passou a se chamar Partido da República, PR. O remetente anexou cinco extratos de contrato do Dnit com empreiteiras e uma planilha que relaciona os pagamentos feitos pelo governo às empresas, com distribuição de propina. Esses contratos teriam rendido R$ 866,6 milhões a cinco construtoras. Segundo a denúncia, essas empreiteiras teriam repassado R$ 41,8 milhões de propina a políticos e funcionários do Dnit por intermédio de outra empresa, chamada EMPS. A maior parte dos pagamentos ilegais (R$ 25,9 milhões), segundo a planilha, foi feita ao PL, cujos dirigentes também teriam recebido outros R$ 4,3 milhões. São citados como beneficiários desse dinheiro os deputados federais Valdemar Costa Neto e Milton Monti, ambos de São Paulo. Ainda segundo o documento, alguns diretores e altos funcionários do Dnit tam-bém teriam sido beneficiados:
1) Mauro Barbosa, na ocasião diretor-geral do Dnit, com R$ 8,6 milhões, equivalente a 1% das verbas liberadas;
2) Hideraldo Luiz Caron, diretor de Infraestrutura do Dnit até a semana passada, com R$ 1,5 milhão;
3) Luiz Prosel Jr., coordenador de Construção Rodoviária do Dnit na ocasião, com R$ 800 mil;
4) Márcio Guimarães de Aquino, que era chefe da Comissão Permanente de Licitação do Dnit, com R$ 400 mil;
5) Hugo Sternick, ex-chefe da Divisão de Projetos, com R$ 200 mil.
Segundo funcionários, Erenice disse que não investigaria para não criar problemas com a base
Os dois primeiros nomes da lista foram diretamente atingidos pelo escândalo atual. Barbosa era o chefe de gabinete do então ministro Alfredo Nascimento até três semanas atrás. Caiu na primeira leva de demissões determinadas por Dilma.
No final da tarde da última sexta-feira, Caron pediu demissão depois de 15 dias de pressão. Desde o começo da crise, ele foi citado por integrantes do PR como o representante do PT na máquina de aditivos de contratos do Dnit. Contra ele, pesam cerca de 100 pro-cessos no Tribunal de Contas da União (TCU). Num deles, foi condenado em maio a restituir R$ 4,2 milhões aos cofres públicos, co-mo revelou ÉPOCA na semana passada.
As pessoas e empresas citadas no documento apócrifo foram procuradas por ÉPOCA. Por meio de sua assessoria, Dilma encaminhou a seguinte nota: “Não há registro de entrada desta denúncia na Ciset na ocasião citada. A Ciset recebeu hoje (22/7) um e-mail com remeten-te não identificado com relato de fatos que podem corresponder às denúncias narradas pela revista Época. Esses fatos serão apurados por processo administrativo”. Erenice Guerra não foi encontrada.
O deputado Valdemar Costa Neto, secretário-geral do PR, diz que a denúncia não tem sustentação. Para o PR, essas acusações, como todas as outras que vieram a público nas últimas semanas, devem ser apuradas pela Polícia Federal.
Cinco empreiteiras são acusadas na carta de pagar propinas por obras na BR-101, no Rio de Janeiro e no Nordeste. A construtora Queiroz Galvão afirmou que refuta “toda e qualquer acusação de pagamento de propina e contratação de empresa para a realização deste tipo de pagamento”. O Grupo ARG também negou pagamentos ilegais. As outras empreiteiras citadas no documento não responderam às ligações. Procurado para falar sobre os cinco funcionários citados na denúncia, o Dnit informou que todos desconhecem as acusações e negam qual-quer irregularidade. Na entrevista em que anunciou sua demissão, Caron disse que tinha sido procurado por ÉPOCA para falar sobre uma denúncia. Sem entrar em detalhes, afirmou: “Qualquer acusação é absolutamente mentirosa. Espero que quem escrever tenha no mínimo prova”.
A prudência e o benefício da dúvida recomendam que se deve tratar com muito cuidado qualquer denúncia anônima. Todas as normas de boa conduta dos servidores públicos, porém, determinam que as acusações de irregularidades devem ser apuradas para que não pairem dúvidas sobre os responsáveis pelo uso do dinheiro público. A dimensão do escândalo atual mostra que a carta enviada ao Palácio do Planalto em 2006, embora apócrifa, trazia o roteiro de um grande foco de corrupção.

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