Às 11h da manhã de terça-feira, o sol abrasador do verão brasiliense invadia, com raios e calor, as frestas do barraco de papelão da catadora de papel Maria Madalena. Ela preparava a refeição das cinco filhas e do marido. O almoço seria farto na favelinha conhecida como invasão da garagem do Senado: havia uma panela com arroz branco, outra com feijão e uma terceira com carne moída. Lá, cerca de 50 almas vivem distribuídas em oito barracos de madeira e papelão, montados sobre um pequeno chão de terra - menor, por exemplo, do que o plenário do Senado. Quase todos pertencem à mesma família, que emigrou de Tabira, em Pernambuco, para a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, há 25 anos. Maria Madalena, uma mulher de 28 anos e poucos dentes, e Rodrigo, seu marido, calculam ganhar R$ 300 reais por mês com a venda de lixo reciclável, além de receber R$ 394 do programa Bolsa Família. Rosa, irmã de Maria Madalena, que também mora na invasão, não recebe Bolsa Família e tira R$ 130 reais com a venda de lixo. Para o governo, Rosa, Maria Madalena e Rodrigo não são miseráveis. Miserável, ou “extremamente pobre”, pelos critérios dos burocratas de Brasília, é quem sobrevive com menos de R$ 70 por mês. Naquela manhã de terça, a menos de um quilômetro dali, a presidente Dilma Rousseff anunciava, numa cerimônia no Palácio do Planalto, que o governo aumentaria os gastos com o Bolsa Família, de modo que todos inscritos no programa venham a receber ao menos R$ 70 reais a partir de março. “Com o ato que assino hoje, o Brasil vira uma página decisiva na nossa longa história de exclusão social. Nessa página, está escrito que mais 2 milhões e 500 mil brasileiros e brasileiras estão deixando a extrema pobreza”, disse Dilma. Enquanto ministros, governadores e parlamentares aplaudiam Dilma, as meninas de Maria Madalena - as pequenas Giuli, de oito meses, Pamela, de 3 anos, Giovana, de seis anos, Kevelyn, de 9 anos, e Juliana, de 11 anos - preparavam-se para comer o pratinho do dia. Não era comida de supermercado. Era comida achada num lixo da Esplanada, no dia anterior. “A ideia inicial por trás deste ato hoje é esta: por não termos abandonado o nosso povo, a miséria está nos abandonando”, disse Dilma. Mais aplausos.
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O que é ser miserável no Brasil? O governo tem razão em definir a miséria, como fazem muitos países, por um critério meramente econômico? E, ademais, R$ 70 são suficientes como piso para sobreviver? São perguntas difíceis, cujas respostas dizem muito sobre o país que queremos ser. Por um lado, é inegável que as famílias que vivem do lixo da Esplanada são gratas ao dinheiro que recebem do Bolsa Família. Mas isso não resolve a questão - a não ser que se considere aceitável alguém viver de comida achada no lixo. “A escolha da linha da extrema pobreza é política e não técnica. Decidir o nível da linha é decidir o esforço que vai se fazer para combater a miséria”, diz Marcelo Medeiros, um sociólogo da Universidade de Brasília que estuda o tema. No caso da linha adotada pelo governo brasileiro, dos R$ 70, Medeiros acrescenta: “Essa linha facilita a solução do problema, porque engloba menos gente do que se fossem R$ 150, por exemplo. Atende realmente quem tem prioridade absoluta, quem está numa condição tão extrema que pode realmente morrer de fome. Mas deixa de fora outros aspectos do que é realmente ser miserável.”
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Rosa dos Santos, a irmã de Maria Madalena, que também mora na invasão da garagem do Senado, não conhece a dignidade de Kant. Na tarde ensolarada de quinta-feira, ela buscava o que comer no lixo da Marinha. Não demorou a encontrar sobras de pastel de carne de queijo num dos sacos pretos de lixo. Comeu com gosto, sem hesitar. E ainda deu uns pedaços à sobrinha Kevelyn. Não parou por aí. Continuou chafurdando. Achou um punhado de carne de porco. Comeu um pedaço, e dividiu os restos com a cadela Raimunda. O ritual da cata naquela lixeira é diário. São nove contêineres de lixo atrás do anexo da Marinha, no Ministério da Defesa. “A Marinha é pai e mãe de gente”, diz Rosa, enquanto traça os pastéis do lixo. “Aqui é o lixo mais rico.” Alguns funcionários do restaurante da Marinha separam o arroz, o feijão e a carne em sacos diferentes, sabendo que alguém sempre vem buscar. O cunhado de Rosa, Neto, também catador de papel, já tinha estava ali antes, recolhendo a “lavagem”, como eles chamam os restos de comida misturada. Neto vende o que encontra na “lavagem” para um conhecido que cria porcos.
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O governo Dilma, apesar de ter bordejado com o triunfalismo político na cerimônia de terça-feira, reconhece os limites dos critérios econômicos para a definição de miséria. Reconhece também que ainda há muito a se fazer. “A linha dos R$ 70 envolve uma discussão mais complexa, de qual o grau de solidariedade da população brasileira, qual o nível de desenvolvimento que se espera. Esse é um debate que fica daqui para frente”, diz Tiago Falcão, secretário do Ministério do Desenvolvimento Social, que cuida de programas como Bolsa Família. Enquanto esse debate não vem, as famílias da invasão do Senado são gratas à solidariedade que vasculham no lixão da Marinha.
De Flávia Tavares, Revista ÉPOCA
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