A Guerra Fria, o 'terceiro mundo', Cuba, China, tudo nos dava a sensação de que a 'revolução' estava próxima
Meu primeiro grande amor começou num “aparelho” do Partido Comunista Brasileiro em 1963, meses antes do golpe militar. No apartamento, havia um sofá-cama com a paina aparecendo por um buraco da mola, entre manchas indistintas — marcas de amor ou de revolução? Na parede, havia um cartaz dos girassóis de Van Gogh e, numa tábua sobre tijolos, uns livros da Academia de Ciências da URSS. Um companheiro me emprestara a chave com olhar preocupado, sabendo que era para o amor e não para a política. Pouquíssimas moças “davam”, na época anterior à pílula; transar para elas era um ato de coragem política. Nossas cantadas tinham uma base ideológica; famintos de amor, usávamos Marx para convencer as meninas.
“Não! Aí eu não entro!”, gemiam as namoradas, empacando na porta do apartamento. Nós, sordidamente, usávamos argumentos assim: “Mas, meu bem... Deixa de ser ‘alienada’... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita.”
Éramos assim nos anos 1960. A Guerra Fria, o “terceiro mundo”, Cuba, China, tudo nos dava a sensação de que a “revolução” estava próxima. “Revolução” era uma varinha de condão, uma mudança radical em tudo, desde nossos “pintinhos” até as relações de produção.
Havia os radicais de cervejaria, os radicais de enfermaria e os radicais de estrebaria. Os frívolos, os burros e os loucos. Nas minhas cervejarias filosóficas do passado, o radical (que nunca havia feito nada pelo povo) enchia a cara e gritava: “Viva a Luta Armada! E, garçom, me traz um chopinho!”
Claro que havia também os grandes homens intrépidos, os guerreiros que morreram por seus ideais, com bala na agulha e coragem heroica, arrasados por militares treinados pelos americanos; foi um massacre.
Mas, na verdade, nunca houve bases concretas para o socialismo utópico que praticávamos, mesmo morrendo. Nós odiávamos os “meios” e só amávamos os “fins”. Os fracassos nos emprestavam uma aura de martírio que nos enobrecia.
Era uma vingança contra traumas familiares, humilhações, pequenos fracassos. Era também uma mão-na-roda para a justificar nossa ignorância — não, pois não precisávamos estudar nada profundamente, por sermos a “favor” do bem e da justiça. A desgraça dos miseráveis nos doía como um problema existencial nosso. A democracia nos repugnava, com suas fragilidades, sua lentidão, sua obra sempre aberta. A parte chata da revolução, deixávamos para a liderança ao presidente da República, na melhor tradição de dependência ao Estado. Jango, coitado, teria de orquestrar as forças delirantes, feitas de restos de um getulismo tardio, oportunismo de pelegos e sonhos generosos da juventude imatura. Valeu-nos vinte anos de bode preto.
Os radicais rotulavam as pessoas como: sectários, aventureiros, obreiristas, desviacionistas de direita, revisionistas, hesitantes, liberais. Ninguém mencionava outras categorias psicológicas: paranoicos, histéricos, babacas, caretas e até filhos da p...
Qualquer argumento mais sofisticado, qualquer sombra de complexidade era traição. O bolchevique espetava o dedo na cara do intelectual e fuzilava: ”O companheiro está sendo muito liberal, pequeno burguês revisionista”. E o “pequeno burguês” revisionista ia vomitar atrás da porta. Um “camarada” me disse: “O marxismo supera a morte! “Como?” — disse eu, espantado. “Claro” — me responde ele, iluminado de certeza — “uma vez dissolvido no social, o mito do indivíduo se desfaz, e a ilusão de que ele existe como pessoa. Ele só existe como espécie. E não morre. O marxista não morre!” E eu, fascinado, sonhei com a vida eterna...
Por que escrevo essas coisas antigas, estimado leitor? Porque li o espantoso manifesto do PC do B em apoio aos psicóticos crimes contra a Humanidade e seu povo que os Kims vêm cometendo. Defendem um dos regimes mais brutais da historia.
Vejam o PC do B:
“Sr. Embaixador da Republica da Coreia o Norte: A campanha de uma guerra nuclear desenvolvida pelos Estados Unidos contra a República Democrática Popular da Coreia passou dos limites e chegou à perigosa fase de combate real. Apesar de repetidos avisos da RDP da Coreia, os Estados Unidos têm enviado para a Coreia do Sul os bombardeios nucleares estratégicos B-52. Os exercícios com esses bombardeios contra a RDP da Coreia são ações que servem para desafiar e provocar uma reação nunca antes vista, e torna a situação intolerável.
As atuais situações criadas na península coreana e as maquinações de guerra nuclear dos EUA e sua fantoche aliada Coreia do Sul, além de seus parceiros que ameaçam a paz no mundo e da região, nos levam a afirmar:
1. Nosso total, irrestrito e absoluto apoio e solidariedade à luta do povo coreano para defender a soberania e a dignidade nacional do país;
2. Lutaremos para que o mundo se mobilize para que os Estados Unidos e Coreia do Sul cessem imediatamente os exercícios de guerra nuclear contra a RDP da Coreia;
3. Incentivaremos a Humanidade e os povos progressistas de todo o mundo e que se opõem à guerra que se manifestem com o objetivo de manter a Paz contra a coerção e as arbitrariedades do terrorismo dos EUA.
Brasília, 02 de abril de 2013.”
Não é impressionante o atraso mental do país? Só o hospício.
Milhares de inocentes estão sendo levados a concluir que voltou a hora do “comunismo”, mesmo depois dos milhões de assassinados e do fracasso politico e econômico. Milhares de jovens desinformados enchem as faculdades de “coreanos” em defesa da morte, da repressão e da fome.
E saibam que o PC do B controla o esporte e a cultura nacionais.
Quase todos que gritam slogans como patéticos escravos coreanos não haviam nascido nos tempos de Goulart. Muita gente sem idade e sem memória ignora que o caminho para o crescimento é o progressivo aperfeiçoamento do que chamávamos de democracia “burguesa”, minando aos poucos, com reformas, a nossa doença fatal: tradição oligárquica e patrimonialista.
Há 40 anos, eu não sabia nada disso. Tanto que para levar meu primeiro amor ao apartamento, lembro de lhe ter dito, entre beijos: “Nosso amor também é uma forma de luta contra o imperialismo norte- americano”. E ela foi.
De Arnaldo Jabor, jornal O GLOBO
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